Primeiramente, a
liberdade da constituição não implica na liberdade do cidadão,
nem a liberdade do cidadão implica por si só na liberdade da
constituição. Enquanto a primeira requer uma divisão dos três
poderes – o executivo, o legislativo e o judiciário – o segundo
está ligado à segurança. A segurança de não sofrer violência de
seus pares, de não ser perseguido, de não ver sob ameaça as suas
crenças, a sua tranquilidade, ou aos seus costumes.
Em se tratando da
Justiça, a segurança do cidadão corre perigo se os meios que a
mesma se utiliza são pouco confiáveis, como é o caso de bastar o
testemunho de um acusador para que o acusado seja condenado. Para
Montesquieu, parece mais justo que haja pelo menos dois testemunhos
contra o mesmo acusado, pois, diante de apenas um acusador, estaria a
se defender um único acusado e, na contagem dos votos a favor e
contra o acusado, haveria uma situação de empate. No entanto,
podemos estender essa visão de justiça de Montesquieu considerando
outros fatores que não são previstos por ele. O conluio é um
desses fatores. O equívoco de quem testemunha é outro.
No caso de conluio, o
acusado passa de transgressor a vítima, pois fizeram um acordo para
conseguir a condenação de um inocente, que normalmente não tem
meios de provar a má-fé do conjunto de pessoas que o acusa. O
conluio pode ser formado muito antes do primeiro acusador se
apresentar, o que dificulta a descoberta da intenção de prejudicar
o acusado. Se bastam os testemunhos, então, não se pode haver
garantia de justiça para o acusado.
Quando alguém que
testemunha com equívoco contra um acusado, seja por um mal
funcionamento da memória, ou por uma interpretação equivocada do
que tenha testemunhado, ou ainda por ser movido pela simples
convicção baseada tão somente nas suas crenças, o acusado está
em situação de insegurança, pois pode ser condenado ainda que
nenhuma culpa carregue.
Outro aspecto
relacionado à segurança do cidadão é a prudência para os
chamados crimes contra a religião. No contexto em que fala
Montesquieu, os crimes de heresia e de magia deveriam ser tratados de
forma cautelosa, uma vez que seria difícil constituir uma prova
concreta e provavelmente justa para esses dois crimes. Montesquieu
nos relata um caso de que, com base na revelação de um bispo sobre
um milagre ter sido impedido pela magia de um indivíduo, condenou-se
à morte o indivíduo e seu filho. Em seu argumento, Montesquieu nos
diz que seriam necessários diversos fenômenos interligados para que
tal acusação pudesse ser justa: em primeiro lugar, que revelações
espirituais fossem comuns; depois, que o bispo em questão tivesse
recebido uma; em seguida, que um milagre estivesse em vias de ser
realizado; depois, que a magia tivesse o poder de impedir um milagre;
seguido de que a magia tivesse sido de fato usada para malograr o tal
milagre; e, por fim, que o indivíduo acusado tivesse realmente
poderes mágicos.
No mais, Montesquieu
recomenda que, para evitar diversas manifestações tiranas, é
preciso que a república se abstenha de punir crimes contra a
religião, exceto que os mesmos recaiam em outra classe de crimes, a
saber, os crimes contra os bons costumes, ou contra a tranquilidade,
ou contra a segurança do cidadão.
Assassinar uma criança
em um ritual satânico é com certeza um crime contra a religião
cristã, mas é para além disso um crime contra a vida, portanto
atinge não só a tranquilidade como aos bons costumes e à segurança
dos cidadãos em geral.
Por outro lado, a
ofensa ao divino é um problema entre o ofensor e a divindade, não
podendo ser cuidada pela república. Ainda assim é preciso estar
atento para não fomentar a vingança pela divindade. Isto é,
aqueles que buscam punir o ofensor da divindade, como se isso não
representasse por si só uma contradição com a crença na
divindade, tornando-a um ser inócuo e incapaz defender-se a si
mesmo.
Quando se trata da
tranquilidade do cidadão, uma vez transgredida, Montesquieu afirma
que a punição deva ter relação com a natureza da coisa afetada.
Assim as penas devem ser de prisão, exílio, correções e outras
penas que sejam capazes de reorientar o que ele chama de espíritos
inquietos, obrigando-os a entrarem na ordem estabelecida. Quando ele
fala em restringir essa classe de crime apenas aos atos que perturbam
a ordem e não atingem à segurança simultaneamente está se
referindo aos atos que, apesar de afetarem a tranquilidade não
oferecem risco para a segurança. No caso de um bêbado que faça
alarde pelas ruas, estaria apenas ofendendo à tranquilidade, mas, se
este ameaça jogar pedras nas demais pessoas, este passaria para a
quarta classe de crimes, que são os crimes contra a segurança.
Ele chama as penas aos
crimes contra a segurança de suplícios. Diz ele que essas penas têm
inspiração da própria natureza da coisa, e exemplifica com a pena
de morte aplicada a um assassino ou a alguém que tenha tentado tirar
a vida de outro. Em seu argumento para justificar as penas físicas,
os suplícios, ou a tortura em linguagem aberta, Montesquieu diz que,
nos crimes contra o patrimônio, o ideal seria a perda do patrimônio
em igual monta, mas, como os que praticam tais crimes em geral são
os desprovidos de patrimônio, a pena corporal pode ser substituta da
pena pecuniária. Depois de afirmar que os castigos físicos estão
justificados, ele completa que teria extraído tais argumentos da
própria natureza e que tudo o que falou é extremamente favorável à
liberdade do cidadão.
Admirador das
monarquias moderadas, Montesquieu não se absteve de revelar essa
admiração e de narrar as adequações ao que chama de crime de
lesa-majestade e dos perigos que trazem a não explicitação do que
seria esse crime. Na ausência de uma definição, ou de uma listagem
completa e clara, Montesquieu acredita que há o risco de se incorrer
em tiranias de toda a sorte. Se nada é dito sobre esse crime a não
ser que sua pena é a pena capital, poder-se-ia utilizá-lo como
pretexto para eliminar toda e qualquer oposição real ou suposta.
Partidário dos
exemplos, ele nos informa de um caso em que um súdito sonha com um
ato de revolta contra seu soberano e este, tendo conhecimento do
sonho, concluiu que o mesmo só poderia ter sonhado se tivesse
durante o dia pensado sobre aquilo. Então, o soberano decidiu
aplicar-lhe a pena de morte. Montesquieu neste ponto avisa que, mesmo
que o súdito tenha pensado sobre o assunto, apenas as ações
externas é que podem ser alcançadas pela lei. Os pensamentos, e até
mesmo as palavras não podem ser usadas para condenar quem quer que
seja e principalmente em se tratando de pena de morte.
Se o pensamento ou
mesmo os sonhos pudessem ser atingidos pela lei, todos os cidadãos
estariam sob eterno perigo de se verem diante da tirania, perdendo até
mesmo a liberdade de pensar. E até mesmo o soberano, em alguns
casos, como o relatado por Montesquieu: uma lei da Inglaterra,
promulgada no reinado de Henrique VIII, condenava à morte quem
predissesse a morte do rei. A consequência de tal lei foi que,
adoecendo o rei, nenhum médico teve coragem de avisar-lhe do perigo
de morte que se apresentava. Caso o médico procedesse como deveria,
isto é, dando o correto diagnóstico para o rei, provavelmente, o
médico sofreria a pena capital.
Por isso, para
Montesquieu é fundamental que as palavras somente possam ser
tratadas como crime caso estejam ligadas à ação. Palavras por si
só não constituem um crime, mas a ação ligada a elas pode
configurar-se um crime.
Na mesma linha, um
escrito que ataque a honra de um monarca não deve atingi-la, pois
está o monarca, na visão de Montesquieu, muito acima do que lhe
tenta ofender. Mas, caso esta ofensa se dirija a um aristocrata, esta
o atravessa de um lado a outro, para usar um expressão daquele
pensador. Mesmo assim, somente ligada à ação pode a palavra passar
a ser crime.
Nos crimes contra
pudor, é a ação externa que deve mais uma vez ser punida. Ainda
que os pensamentos possam ser reprováveis do ponto de vista da
ética, eles não podem ser considerados puníveis, pois estão fora
do alcance das leis.
Se por um lado se pune
os crimes contra o pudor, porque os mesmos atentam contra a
tranquilidade e a segurança do cidadão, por outro lado, quando, para burlar a lei
romana que proibia aplicar a pena de morte para moças não núbeis,
Tibério mandava o carrasco violentar tais moças antes de enviá-las
ao suplício, e nos vemos diante da barbárie que nem sequer se pode
adjetivar.
Mas os exemplos de
despotismo dados por Montesquieu não se restringem a gregos e
romanos. Os hebreus e seu livro de Deuteronômio são considerados
por ele uma porta aberta para todos os tipos de crimes. Inclusive
incentivando a vingança.
A vingança por si só
é uma coisa desprezível quando comparada à justiça. Mas, a
vingança continuada, que não se acaba na pessoa do ofensor, mas se
estende sobre a sua descendência, enfraquece as repúblicas.
Montesquieu compara gregos e romanos neste quesito, relatando que os
romanos souberam melhor tratar o assunto, evitando a continuidade da
vingança, o que consumiria as suas repúblicas.
Outra coisa que
demonstra a fraqueza de uma república é o uso de espiões. Se são
necessários espiões para evitar a conspiração, é porque já não
se tem força para evitá-las. Isso é típico de governos ilegítimos
ou despóticos que sabem que a qualquer momento pode-se abater sobre
ele uma conspiração. Montesquieu afirma que se deve governar pelo
exemplo. Ao monarca, diz ele, cabe perdoar, punir, mas nunca insultar
seus súditos.
Por fim, mas não
necessariamente menos importante, ou em acordo com a ordem dos
tópicos estabelecida em “O Espírito das Leis”, Montesquieu nos
fala das calúnias. Se alguém tem provas de um ilícito cometido por
outro, faz uma denúncia formal diante dos magistrados e não de
outra forma. Se procedem de outra forma é porque não visam ao bem
público e temem que a lei seja posta entre eles e o acusado. O seu
ensinamento é que, para os que assim agem, a menor pena que podemos
aplicar-lhes é o total e solene descrédito.
Espero que tenha sido útil essa leitura.
Até breve!
***
Por Renata Oliveira
Editado por Marcos Pinnto.
HISTÓRIAS DE UMA SERTANEJA sob o sol impiedoso do semiárido
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